Belmiro de Almeida (Brasil, 1858-1935)
Crayon sobre papel, 16 x 15 cm
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De 1930 a 1960, em termos de boa música e mau comportamento o Rio teve um Carnaval como nenhum outro lugar ou época. Sendo uma cidade razoavelmente católica, produziu, sob as barbas do Cristo Redentor, Carnavais mais pagãos que os do próprio paganismo egípcio ou das bacanais romanas — aqui, o boi Ápis viraria croquete de botequim e Baco não pegaria nem aspirante no Clube dos Cafajestes, uma confraria de rapazes bem-nascidos e educados que usavam a alegria para fins saudavelmente imorais, como bailes, festas, orgias, com uma ou outra briga para manter a forma.
Por cair quase sempre em fevereiro, coincidindo com o esplendor do verão e convidando à pouca roupa, o Rio deixou longe em euforia os Carnavais invernais que o inspiraram, como os de Nice e de Veneza (os quais continuaram a ser o que sempre foram: belos bailes a fantasia). O Carnaval carioca também permitiu ver que, em comparação, o de Nova Orleans era uma festa aristocrática, exclusivista e racista, de brancos e negros brincando iguais, mas separados. No Rio, o samba e a marchinha nivelaram tudo. A partir deles passou a haver um só Carnaval para os negros, brancos e mulatos.
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Carnaval, sem data.
J. Carlos (Brasil 1894-1950)
Nanquim e guache sobre papel, 18 x 27 cm
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Seus criadores e intérpretes eram gente de todas as raças e classes, trabalhando e se divertindo juntos. Nos anos 30, o cantor Mário Reis, branco de família rica, cantava os sambas que Ismael Silva, negro e pobre, fazia em parceira com o branco de classe média Noel Rosa, acompanhado por uma orquestra de músicos brancos e negros. Dos três maiores cantores da época, Francisco Alves era branco, filho de portugueses; Orlando Silva era mulato, de cabelo passado a ferro; e o Sílvio Caldas, moreno de cabelo em escadinha, era o quê? Era o “Caboclinho querido”. Mas que importância tinha isso? Terminada uma apresentação no rádio ou no teatro, saíam todos juntos e se sentavam às mesas do Café Nice, na avenida Rio Branco, ou de um humilde pé-sujo no Estácio, e o samba continuava. Tais combinações eram rotina no Rio.
A rigor nem eram novidade. As bandas militares cariocas em fins do século XIX eram mistas, e a mais importante delas, a do Corpo de Bombeiros, tinha um maestro negro, Anacleto de Medeiros. “Pelo telefone”, em 1917, já fora assinado por um preto e um branco, lembra-se? A primeira orquestra de sambas e de choros, Os Oito Batutas, de Pixinguinha, criada em 1922, era preta e branca em partes iguais, quatro para cada lado, e tocava para platéias mistas, em cinemas e teatros. Alguns anos depois, quando surgiu o rádio, os músicos negros de qualquer instrumento sempre tiveram espaço nas emissoras do Rio (em outras cidades do Brasil só eram admitidos como cantores ou percussionistas). E as gravadoras americanas sediadas aqui nunca cometeram a torpeza de obrigar suas filiais brasileiras a produzir race records (discos mais baratos de artistas negros para compradores idem), como faziam nos Estados Unidos com os jazzistas. O samba e o jazz podem ter nascido ao mesmo tempo, dos mesmo avós africanos e molhado fraldas simultâneas, mas, defintivamente, seguiram caminhos diferentes. (Não é uma vergonha, por exemplo, que o jazz tenha levado vinte anos para ter sua primeira formação “integrada”? A qual foi o trio do clarinetista Benny Goodman, em 1936, com o pianista negro Teddy Wilson, e, no começo, só para gravações em estúdio, longe das vistas de uma platéia branca.)
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Arlequins, 1939
Dimmitri Ismailovitch (Rússia, 1892 – Brasil, 1976)
Óleo sobre tela, 59 x 37 cm
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Alguém já comentou admirado que o brasileiro “é um negro de todas as cores”. Se se estava referindo ao carioca, que se orgulha dessa mistura, era perfeito. Aqui somos mesmo neguinhos assumidos, das mulatas de olhos verdes aos “brancos” como eu, com leite e café na família. Sem esquecer as louras autênticas, de pele clara e olhos azuis e sobrenome europeu — elas podem ser tudo isso, mas a bunda não nega e o jeito para sambar, também não. O Rio é uma exuberante variedade de cores de pele e olhos, texturas de cabelo e formatos de nariz e lábios — resultado de cinco séculos de gip-gip-nheco-nheco sobre redes, catres, chaises longues, camas com dossel, de pé contra uma bananeira, ou na praia mesmo, à milanesa. Todos no Rio temos um pé na África e os que não têm, gostam de dizer que têm. Mesmo porque não podem jurar que não tenham. Sabe-se lá o que, em 1850, o nhonhô estava fazendo com a vovó nos fundos do sobrado?
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Em: Carnaval no fogo: crônica de uma cidade excitante demais, Ruy Castro, São Paulo, Cia das Letras: 2003, páginas: 86-89