Há muitos anos, quando morava em Portugal, fui atrás da aldeia de onde meu avô paterno emigrou para o Brasil. Deveria dizer minha bisavó, já que meu avô era um menino de 10 anos e ela viúva. Foi nesta época que descobri a pequenez de uma aldeia, perdida nos campos quase áridos de Trás-os-montes. O lugar não chegava a umas 80 casinhas, mas havia uma igreja, onde por uma vez assisti a uma missa num domingo.
A aldeia, presença constante nos rincões europeus, materializou-se vívida na leitura de O sol dos Scorta, ( Nova Fronteira: 2005) livro de Laurent Gaudé, que escolhi como leitura neste longo fim de semana da virada do ano. A Puglia — o salto da bota da Itália — é muito distante dos vilarejos do norte de Portugal. Mas os seres que habitam ambos os lugares são semelhantes nas suas privações, nos seus encontros com uma Natureza inóspita, no laivo de um sistema de terras medieval, enraizado nas almas de seus habitantes e também na Igreja como personagem ativo, tanto positivo quanto negativo, que se faz presente e interfere no dia a dia de todos. Estes são aspectos comuns destes vilarejos europeus, incrustados nas partes de mais arredio acesso do território latino. Talvez a minha imaginação tenha sido vastamente beneficiada pela magnífica narrativa do autor, que com este livro ganhou o Prêmio Goncourt de 2004 assim como pela tradução de Maria Helena Rouanet.
Apesar de a aldeia – chamada Montepuccio — e a Igreja serem personagens nesta história, não são, contudo, seus principais elementos. Nas 235 páginas deste romance seguimos a formação e continuação de uma família, os Scorta. Conhecemos quatro gerações, mas maior ênfase é dada à terceira geração, quando a família incluindo seus agregados, se torna uma entidade de maior importância que seus membros, que suas partes.
A narrativa cobre aproximadamente cem anos da dinastia Scorta, uma família que começa bastarda, resultado de uma vingança e de um engano, mas voluntariamente, desejosamente trazida à luz. E é neste balanço entre o certo e o errado, entre o que se deseja e o que se consegue, entre o roubo e a honestidade, que esta família sobrevive, vinga e permanece através das gerações. Seus personagens trançam seus destinos entre um namoro e o desapego do bem com o mal: seres humanos complexos com uma aparência simples. Só a família, esta sim, é o que importa, personagem central da trama, para ela todos os sacrifícios são válidos. É a seus pés que colocamos nossas oferendas, através dela que realizamos nossos sonhos, e por ela que vivemos, sofremos, bebemos e amamos.
Este livro me chegou às mãos por acaso. No entanto é um livro que mereceria maior divulgação. Não só a narrativa é executada com mestria como a trama parece refletir contos ancestrais, povoados de personagens cujos arquétipos trazemos entre nós no nosso imaginário comum, no nosso inconsciente coletivo. Lê-lo pede uma reflexão sobre os nossos hábitos e costumes. Lendo-o podemos conhecer um pouco mais sobre quem somos. Não pense duas vezes. Ponha este livro nas suas listas de leitura para 2009.