Traído pela memória, Agualusa com o seu O Vendedor de Passados

3 01 2010

Início de ano prolongado…  Estou aproveitando o tempo para limpar o escritório e colocar coisas em ordem.  Assim, antes de descartar algumas resenhas que foram feitas para outros fins, que não o blog, venho aqui postá-las para não perder de todo o controle do que li, e das minhas reações a certas leituras.

Traído pela memória

No futuro quando a transição entre os séculos XX e XXI for estudada, talvez encontrem vestígios de que a perda de memória era uma preocupação constante da época.  Isso porque o assunto de construir ou re-construir memórias, refrescar as nossas memórias, revistas das décadas dos anos 50,60 70, 80, tudo isso parece confirmar alguma preocupação com o assunto.  Parece o tema do momento, uma constante cultural  pipocando no mundo inteiro.  Algumas dessas preocupações vêm da generação pós-guerra, dos baby-boomers, que chegam aos sessenta anos. A medida que eles envelhecem o medo da demência senil, de doenças que acabam com a memória como Alzheimer, parece mais forte.  Filmes de Holywood retratando situações em que há problemas de memória também têm sido constantes favoritos do público: “Amnésia”, 2001; “A identidade Bourne”, 2002; “Como se fosse a primeira vez”, 2004; “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, 2004; são uns poucos que me vêm à cabeça.

 

Diferentes aspectos da memória são revistos com bastante humor no livro de José Eduardo Agualusa,  O vendedor de passados.  O título se refere à ocupação de Felix Ventura, o personagem principal da história, que ganha a vida construindo passados os mais detalhados possíveis, para seus clientes.  Essa elocubração fantástica inclui ancestrais, local de nascimento, profissão dos pais, avós, bisavós,  país de origem, antes da imigração para Angola – e pode até incluir, se bem que nem sempre faz parte do pacote – anedotas familiares e árvore genealógica – tudo com documentação que dê apoio a nova vida do cliente.

Alguns vão querer argumentar que a prosa de Agualusa deveria ser definida como “realismo mágico”.  É a moda, hoje em dia, atribuir realismo mágico a escritores cujas línguas nativas vêm do Latim, como é o caso do português.  Sou contra essa definição, porque a acho redutiva.   É verdade que a vida mostrada neste romance não existe, pelo que conhecemos.  Mas, por outro lado, o inseto de Kafka na “Metamorfose”, deveria colocá-lo na categoria de “realismo mágico”.  A verdade é que a imaginação de Agualusa está enraizada numa cultura animista, crente em fantasmas e em almas do outro mundo, em profecias e conversas com espíritos.  O que pode parecer realismo mágico para uns é o cotidiano na vida de Angola.

Esse livro é narrado, com muito humor, por uma lagartixa, que se lembra de sua vida anterior, e que conversa com Félix Ventura através dos sonhos deste.   Félix Ventura cujo nome, lembremos, quer dizer 2 vezes feliz é capaz de se lembrar tão bem desses sonhos quanto seus clientes acabam se lembrando de todos os detalhes, uma mistura de fatos com realidade,  dos passados por ele construído para suas vidas.  A arte de Ventura está na promiscuidade com que envolve fato e ficção, na construção de um mito que jamais existiu.

José Eduardo Agualusa

 

Através do livro somos lembrados que memória é identidade.  Que memória é ficção.  Que memória é relativa.  Que memória é imprecisa.  Que memória pode ser arquivada no inconsciente de maneiras que não entendemos e que ela pode nos trair.  Que a memória,  sendo única, é uma fábula individual.  Ela é para ser questionada.  Ela existe para ser embelezada.   E que os detalhes que a fazem são representativos do espírito da época. 

Este é um livro sensacional, que deve ser lido.  Rápido na narrativa e com muito humor.   E melhor que tudo, nos faz pensar.  É para se guardar, porque tenho certeza que merece ser lido mais de uma vez.

06/12/2007

Uma outra versão desta mesma resenha foi publicada na época e também aparece em inglês na Amazon.


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