Resenha: “O pescoço da girafa” de Judith Schalansky

27 04 2016

 

 

GrandvillefullAs metamorfoses do dia, 1829, ilustração de Grandville.

 

 

No livro “Jokes and their relation to the unconscious”, Sigmund Freud explana sua teoria do humor como expressão do sublime. Sublime neste contexto tem o sentido de assombroso, supramundano, semelhante ao seu sentido na literatura gótica da virada do século XVIII para o XIX.  Os surrealistas, quase cem anos atrás, usaram o conhecimento das teorias de Freud para justificar o que se convencionou chamar humor negro: a porta de entrada para o inconsciente. Um estudo sobre o surrealismo por Anna Balakian mostra que o humor negro era um canal para retratar uma realidade ou uma crise incompreensível.  E é justamente assim, através de um humor de justaposições irracionais e de gosto duvidoso, que somos apresentados à realidade de Inge Lohmark, professora de biologia no Colégio Charles Darwin, na antiga Alemanha Oriental.

Inicialmente nos dobramos de rir ao perceber as comparações que Frau Lohmark faz entre o mundo animal e o comportamento de seus alunos.  Baseando-se na teoria da evolução de Darwin, Inge Lohmark cativa a atenção do leitor, por explicar de modo claro, como o comportamento das crianças na sala de aula espelha aquele dos animais na eterna busca pela sobrevivência do mais forte.  Aos poucos, no entanto, começamos a perceber o desequilíbrio emocional da mestra.  A mudança é sutil.  Só quando o leitor já se vê cansado das teorias de Lohmark sobre o mundo, ele percebe, de repente, que entrou no fluxo de pensamento dela, como se testemunhasse a escrita automática que André Breton e seus cúmplices do movimento surrealista advogavam.

 

9788556520098

 

O humor era entendido pelos surrealistas como uma crítica implícita aos mecanismos mentais convencionais. O conhecimento da obra de Freud lhes deu o ponto de partida para explorar o humor negro, ignorando a lógica como uma maneira de pensar, a fim de recuperar a verdade encontrada na percepção sensorial.  Este parece ser mais ou menos o caminho escolhido por Judith Schalansky para levar avante esta obra da qual qualquer escritor que tivesse assinado o Manifesto Surrealista de 1924 se sentiria justificado. Humor, ironia, chiste são os recursos usados para que o véu que esconde a verdadeira natureza da professora de biologia seja levantado. E o que se encontra, pode não ser tão bonito assim.

Inge Lohmark é uma professora idosa, amarga, infeliz, que passa a narrativa ruminando sobre o sistema escolar na antiga Alemanha Oriental, lugar onde havia nascido, crescido e estudado.  Suas ruminações são por vezes hilárias.  Mas as mudanças vindas com a unificação do país se mostram difíceis de abraçar no âmbito profissional, político e pessoal.  Sua interpretação baseada na sobrevivência das espécies que explica quase tudo à sua volta é inicialmente  interessante, por ser inesperada,  mas logo se torna cansativa.  À medida que vislumbramos a solidão e amargura da professora, à medida que ela parece mais humana, a narrativa perde a força, ainda que se possa ver com maior claridade a inépcia de Frau Lohmark em se adaptar às mudanças que a vida requer.  E o argumento, a crítica mordaz desencadeada pelas observações da mestra, perde força e claridade com o desenrolar da trama.

 

Judith Schalansky1Judith Schalansky

 

Tenho a impressão de essa obra, essa crítica ao sistema escolar e ao ensino na Alemanha Oriental, pode ser repassada para outras escolas e sistemas de ensino em países diversos, mas não consigo deixar de sentir que esta narrativa é mais significativa para os alemães e talvez para alguns europeus.  Há muito que se perde na mudança de uma cultura para a outra. É uma obra que qualquer escritor surrealista estaria feliz em ter assinado.

É um livro difícil de recomendar. Pode-se entender seu objetivo.  Mas duvido da qualidade de sua mensagem para um público estrangeiro.


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