Como folhas ao léu: O silêncio das montanhas de Khaled Hosseini

17 06 2013

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Uma aldeia no Afeganistão

Jawid Altaf (Afeganistão, contemporâneo)

Óleo sobre tela

www.talents-of-afghanistan.com

Gostei mais de O silêncio das montanhas do que de O caçador de pipas.  Além do autor em comum, esses dois romances têm o Afeganistão como ponto de partida e a cultura afegã norteia ambas histórias. As semelhanças acabam aí.  Contrária à sinopse do livro, esta não é a história de dois irmãos.  Esta é a história de um deles, de Pari, a menina que aos quatro anos de idade se vê separada do irmão Abdullah, a quem ama. Para acompanhá-la seguimos as vidas daqueles que serão importantes em sua vida. Nem sempre porque a conhecem ou porque interferem diretamente no curso de seu destino.  Alguns, os conhecemos, porque apesar de parecerem distantes da trama principal, são responsáveis por ações ou decisões que indiretamente interferem na vida de Pari. Informações que inicialmente parecem extemporâneas, gratuitas mesmo, se mostram de grande valia com o passar das páginas e Khaled Hosseini nos orienta, por entre labirintos temáticos num estilo que lembra  as narrativas longas e redundantes das culturas orais, a prestar atenção ao rumo daquela que ele elegeu para nos guiar nessa trama, a menina, a jovem e depois a senhora Pari.  As histórias detalhadas, vívidas e pungentes desses personagens secundários, de suas conexões próximas ou não à nossa heroína, são  fonte de um esplêndido trabalho de contextualização, que encanta, surpreende e nos leva a ponderar sobre a influência do acaso nos nossos destinos.

Com surpreendente destreza Khaled Hosseini nos revela a beleza crua, trágica, sem polimento, da luta pela sobrevivência, da batalha que engaja todos nós, diariamente, cada qual à sua maneira, mesmo quando não a percebemos. Seus personagens são ricos em detalhes e tridimensionais.  Têm sonhos, aspirações e lutam para realizá-los na medida do possível, com as ferramentas a seu dispor, dentro das circunstâncias que lhes são impostas.  Por quê?  E por quem?  Não importa.  Como nós, eles estão ao sabor do acaso, folhas ao léu, abandonados em seus destinos, tomando as melhores decisões dentro de seus limites. Tudo nesse caso parece válido: traição, assassinato, guerra, crueldade. Como cada um sobrevive é ditado muitas vezes pela tradição e pela oportunidade.  Como manter um resquício de dignidade e aceitar o seu quinhão é a alma da sobrevivência.  É também o que os faz humanos.

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Para quem acredita que trabalho árduo e perseverança — acompanhados do bom caráter —abrem portas para o sucesso, O silêncio das montanhas será frustrante.  Nele a fortuna tem papel importante: dá rasteiras, inebria, é cruel. A vida é injusta: “Adel não era ingênuo a ponto de não saber que o mundo era basicamente um lugar injusto; bastava olhar pela janela do quarto” (pág. 234).  Não há personagens que não tenham que se submeter aos improváveis caprichos do destino: “A beleza é uma dádiva imensa e imerecida, distribuída aleatória e estupidamente” (pág. 284).  Nem mesmo o amor escapa sua interferência.  É a linda moça desfigurada por um cachorro; é o menino que descobre seu pai não ser o herói que imaginava; é a doença incurável que retira a vida prematuramente. São os amores impossíveis, as pequenas e grandes traições que trazem o inesperado a todas as vidas, a todos os seres. A sucessão de desencontros é permanente e avassaladora, e só é domada pela persistência da memória entre os que se amam. Uma memória com imperfeições, igualmente aleatória, mas que dá vida, profundidade e significado às existências. A memória aparece vital para a sobrevivência, mesmo que seus pesadelos escravizem e assombrem.

Khaled-HosseiniKhaled Hosseini

Também surpreende nesse romance a habilidade demonstrada por Hosseini para a variedade narrativa.  Ele consegue misturar diversos modos narrativos sem prejudicar a evolução da história.  Vamos da epístola à entrevista, da fábula ao diálogo contemporâneo, do passado ao presente e de volta ao passado. Uma bela colcha de retalhos tecida pela narrativa e gerenciada com desembaraço e precisão.  Especial menção também deve ser feita à tradução de Cláudio Carina, que passa suave, sem estranhamento, dando ao texto o movimento característico do bom português.

O silêncio das montanhas [And the Mountains Echoed] tem um título inspirado em um verso de William Blake, “And all the hills echoed,” [E todas as colinas fizeram eco] com a palavra ‘hill’ substituída por ‘mountain’ [montanha]. Na nossa versão, o título sugere que as montanhas testemunham o que se passa no primeiro capítulo do livro, impulsionando a ação. Impassíveis, indiferentes, elas compartilham silenciosas do passar das nossas vidas.  De fato o título parece um sumário do espírito desse romance: a indiferença da natureza à nossa sina, aos nossos desejos.



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12 responses

18 06 2013
Chaia Sara Zisman

Ótima resenha. Parabéns pela maneira de sentir os personagens descritos com muita sensibilidade pelo A.

18 06 2013
peregrinacultural

Obrigada, Chaia, vindo de uma escritora, o seu comentário conta em dobro!

18 06 2013
luba iaffe farhi

parabéns como sempre espetacular o seu jeito de nos ajudar a entender o livro

18 06 2013
peregrinacultural

Luba! Obrigada. Vocês é que me fazem entender bem o texto. Bjnhs

18 06 2013
Luciana Pimentel

Excelente texto. Preciso e sensível. Parabéns!

18 06 2013
peregrinacultural

Luciana, obrigada! bj

20 06 2013
Nanci Sampaio

Querida Ladyce:

Terminei, muito encantada, o terceiro livro de Herta Müller e agora posso partir para outro cenário. Depois dessa resenha tão inspirada, meu destino será o Afeganistão. A propósito – sei que você gostou tanto quanto eu do livro de estreia do Paolo Giordano -, seu novo livro “O corpo humano” trata das nossas guerras internas e foi ambientado na guerra do Afeganistão.

Beijo, da Nanci.

23 06 2013
Maria José

Olá! Sobre esta imagem de Jawid Altaf (Afeganistão, contemporâneo)
Sinceramente! Não está assim agora. Não há nada colorido lá no Afeganistão porque os talibãs não deixam e os EUA muito menos.
Só tem destruição, horror.
Tenho medo que aqui fique assim também.

24 06 2013
peregrinacultural

Maria José,

Não sei como anda o Afeganistão agora. Nunca estive lá. Mas sei que muitas vezes as imagens que temos através das revistas e da televisão não são precisas. Por exemplo, quando vemos o Brasil pelos olhos das revistas e das televisões estrangeiras só vemos gente paupérrima, favelas, ruas sem asfalto, meninos correndo pelas ruas descalçoes, com narizes escorrendo… Nunca vemos as ruas arborizadas das cidades, as pessoas indo e vindo dos seus trabalhos, etc, etc.

Além disso, preciso lembrar que nenhum artista tem a obrigação de representar a realidade. Talvez esse seja o Afeganistão que ele tem dentro de si, o Afeganistão de sua juventude… A imagem para mim ecoa a imagem desenhada pelo autor do romance resenhado Khaled Hosseini sobre sua terra natal. Não há obrigações, não há requisitos específicos para qualquer obra de arte. Deixemos o artista se expressar como quiser.

Quanto ao medo de que aqui fiquemos no meio de uma destruição, este eu não tenho. Tenho imensa confiança na nossa capacidade de regeneração. Não só nossa brasileira, mas na capacidade humana dese reabilitar, de reabilitar o seu ambiente. Tomara que as coisas não se desenvolvam como você teme. Acredito muito no conhecimento, na educação e isso leva à regeneração.

Muito obrigada por me dar a oportunidade de aumentar esta conversa. São pontos importantes que você levantou aqui e espero que continue a dar uma espiadianha no que posto. Volte sempre, um grande abraço.

13 07 2013
Ayako

Me apaixonei pelo enredo. Li sentindo cada uma das palavras, me emocionando e me envolvendo. Terminada a leitura sinto a necessidade de ler novamente depois que as tramas paralelas se encaixam. Recomendo!

13 07 2013
peregrinacultural

Sim, entendo a necessidade de ler de novo… Muito bom mesmo. Obrigada pelo comentário, um abraço,

4 06 2014
juliano cesar de oliveira

Oi adorei.. muito obrigado, amei a maneira que vc usou para descrever essa resenha…me fez se interessar pelo livro….mas vc já leu o livro reverso escrito pelo autor Darlei… se trata de um livro arrebatador…ele coloca em cheque os maiores dogmas religiosos de todos os tempos…..e ainda inverte de forma brutal as teorias cientificas usando dilemas fantásticos; Além de revelar verdades sobre Jesus jamais mencionados na história…..acesse o link da livraria cultura e digite reverso…a capa do livro é linda, ela traz o universo como parte principal.
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?

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