Tuareg, 2007
Mo Skett (Austrália)
Aquarela sobre papel
Minha fascinação com o deserto, com o norte da África, com os bérberes, data de muito tempo. Foi parcialmente domada pelo ano que morei em Oran, na Argélia. Foi naquela época que deixei de lado idéias românticas da vida no local, em grande parte feitas robustas pelos escritores e pintores europeus do século XIX, que conseguiram gravar na minha imaginação cenas de maravilhosos banhos públicos, circundados por paredes cobertas de azulejos com desenhos abstratos e colorido especial; ricos ambientes com dezenas de tapetes grossos de lã, cuja arte de fiação local, transformava em sedosos, brilhantes e macias cobertas protetoras para os pés; adereços de ouro, pulseiras escravas; roupas de odalisca e tudo mais com que a imaginação romântica de uma adolescente poderia se deslumbrar. Essas idéias foram rapidamente aparadas, reduzidas quando da minha estadia na moderna cidade de Oran nos anos 80.
Mas meu interesse por este pedaço do mundo nunca chegou a se apagar. E, se quando saí da Argélia havia chegado a um ponto saturação com uma cultura radicalmente oposta à minha – a saturação veio na terceira semana do Ramadã, em que os dias são trocados pelas noites –, saí daquele país ciente de que ainda teria que voltar ao norte da África. Não quis naquela época emendar a minha viagem com a Tunísia ou os Marrocos porque sabia que era preciso fazer jus aos povos que aí habitavam sem trazer comigo preconceitos desenvolvidos ao longo da minha estadia em Oran.
Tipaza, Argélia: teatro romano
Houve naquele ano na Argélia duas visitas que me marcaram para sempre e que estarão vívidas na minha imaginação até os meus derradeiros dias: a visita às ruínas romanas de Tipaza e a visita ao deserto de Saara, mais particularmente, ao oásis que abriga cinco cidades, inclusive a cidade de Ghardaia, também chamado de Pentápolis. Esta passagem pelo deserto foi de uma beleza sem igual, um momento em que tudo se cala diante do espetáculo da natureza. Sempre imaginei voltar.
Com esta dívida à mim mesma foi com grande satisfação que comecei 2009 com a leitura de um livro surpreendente, Tuareg, do escritor espanhol Alberto Vazquez-Figueroa (LP&M: 1988, reimpressão, 2008). Este foi o primeiro livro de Vazquez-Figueroa que li. Não o conhecia. Fiquei certamente encantada com sua habilidade narrativa, extremamente evocativa. Sua descrição do deserto, das paisagens inóspitas que fazem parte do dia a dia dos Tuaregs, é absorvente e sedutora.
É importante também reconhecer que Vazquez-Figueroa consegue num enredo simples e linear trazer a tona os problemas da colonização de povos anciães, tais como os Tuaregs: Gacel Sayad – personagem principal do romance — é imensamente desonrado quando assassinam uma pessoa que estava protegida, sob seu teto, no deserto. Não há maior desonra. Faz-se necessário que ele puna aqueles que cometeram este ato. E assim começa uma aventura no deserto, uma sequência de perseguições, de dissimulações, truques, golpes, tudo parte de uma perseguição da qual ninguém sai vencedor.
Tomando por base o conhecimento dos princípios que regem as ações de Gacel Sayad, é impossível não simpatizar com ele e reconhecer que para aqueles que vivem no deserto nas circunstâncias em que eles vivem o conceito de país, de fronteira, de nacionalidade não só não existe como não faz sentido. E mesmo que não se aprove os diversos assassinatos que ele conduz, nossa simpatia e lealdade estão com ele até o final, porque sabemos que são ações baseadas num extraordinário senso de justiça, mesmo que esta justiça seja completamente diferente da aceita pelo leitor.
Tudo isso é particularmente assessorado por uma belíssima prosa, em que as cenas mais corriqueiras conseguem se transformar em imagens poéticas e sonhadoras:
A noite se fechara sobre a planície pedregosa, a primeira hiena riu longe e tímidas estrelas piscaram em um céu que, logo, estaria todo tomado por elas, no belíssimo espetáculo que nunca cansava de admirar. Eram essas estrelas, das noites de paz, talvez, que o ajudavam a persistir, após um longo dia de calor, tédio e desesperança. “Os tuareg espetam as estrelas com suas lanças para, com elas, iluminar os caminhos…” Um belo ditado do deserto, nada mais que uma frase, mas quem a inventou conhecia bem aquelas noites e aquelas estrelas, e sabia também o que significava contemplá-las horas a fio, de tão perto.
Descrições detalhadas do deserto, da experiência do deserto, são, não só essenciais para o comportamento de Gacel Sayad, mas provavelmente parecem verdadeiramente precisas porque o Vazquez-Figueroa, tendo nascido no Tenerife, passou sua infância no Saara, antes de estabelecer residência em Madri.
O escritor: Alberto Vazquez-Figueroa
Poucos de seus livros estão traduzidos para o português. Além de Tuareg encontrei O iguana, não obstante, vou fazer um esforço para ler seus outros livros. O sucesso de Tuareg, que vendeu mais de dois milhões de exemplares na Espanha e na América Espanhola não vem sem motivo. É um ótimo livro, em que o entretenimento, a aventura, não tiram de foco considerações mais sérias sobre a colonização e o estupro cultural de povos cujas bases culturais são tão antigas quanto a humanidade.