Entrada da fazenda, 1966
Aldo Bonadei (Brasil, 1906-1974)
óleo sobre tela, 59 x 77cm
O Rio Grande do Sul está em todos os nossos pensamentos. Dia sim. outro também. Durante a semana passada, uns versos, que eu não sabia de quem, e que não sabia de onde vinham, vieram me visitar, memória é uma coisa chocante.
Por muitos anos tive o hábito de anotar versos que lia e que achava bonitos. Na adolescência certamente sem o cuidado que desenvolvi, ao longo dos anos, de anotar o autor, o livro etc. A frase que me perseguiu foi “os rios são com certeza, o pranto da natureza.” Bem, chegar à autoria de Olegário Mariano foi fácil. Bastou abrir aspas, colocar a frase no Google, fechar aspas e procurar. O problema foi achar a poesia…. Achei. Tenho em casa a obra completa do poeta. Mas são dois volumes… Levei um tempinho. Aqui vai para vocês.
Acredito que o rio mencionado na poesia seja o Rio Saracuruna aqui no estado do Rio de Janeiro. Já naquela época, antes de 1931, Mariano nos alertava sobre os maus tratos que este rio recebia.
A Fazenda Santa Cruz
Olegário Mariano (1889-1958)
Por entre a folhagem verde
Que pelas brenhas se perde,
No coração da Fazenda
Dorme a casa de vivenda.
Um pátio largo defronte,
Ao fundo azul — o horizonte
A crepitar, esbraseado,
Num crepúsculo doirado.
A mata pesada, imensa,
Parece que sonha ou pensa…
Catedral verde que encerra
O culto simples da terra.
Abre-se um rio de prata
E, num fragor de cascata,
Borbulha de duna em duna…
É o rio Saracuruna.
À tona um enxame treme
Se equilibra e vibra e freme,
E às vezes se desmorona
Como uma coluna, à tona…
Umas partem, outras voltam,
As asas doiradas soltam
Em nervosas tarantelas,
Brancas, verdes amarelas.
Bate a porteira da entrada.
Sonolenta entra a boiada:
— Pintado! Moreno! Audaz!
And à frente, meu rapaz!
Um deles, o mais tristonho,
Que é pesado como um sonho,
Olhando o campo tão lindo,
Vai passando, vai mugindo…
Entre árvores surge a lua,
Branca e inteiramente nua,
Mostrando, em suaves coleios,
O tronco, os braços, os seios…
Sobe e do alto descampado
Espalha um véu de noivado
Com cintilações estranhas
Pela encosta das montanhas…
Depois desce ao rio, e o rio
Que rola sereno e frio,
Se enrosca num frenesi:
— Beija-me as águas, Iaci!
O Saracuruna sonha…
Na marcha lenta e tristonha,
O rio lembra um vivente
Porque chora, porque sente.
Vai sinuoso… Entra a devesa
Levando na correnteza
Troncos, arbustos e ninhos
Que encontrou pelos caminhos.
E perde-se longe… Agora
Nem sinal da água que chora…
Os rios são, com certeza,
O pranto da natureza.
Em: Toda uma vida de poesia — poesias completas, Olegário Mariano, Rio de Janeiro, José Olympio: 1957, volume 1 (1911-1931), pp. 90-92.